O risco de um remake da Revolta da Vacina
Clara Becker
eGabriela de Almeida
A desinformação como um risco para a saúde pública não foi uma novidade trazida pelas redes sociais ou pelo boom das fake news nos últimos anos. Entre maio e julho de 1904, a procura pela vacina contra a varíola estava em plena ascensão no Rio de Janeiro — naquele período, foram 8.200 pessoas vacinadas em maio e 23.021 em julho. Eis que surgiu o debate sobre a obrigatoriedade da vacina e a consequente politização do tema, com opositores da vacina incentivando uma campanha de desinformação que culminou numa brusca queda dos índices de vacinação. A curva de vacinados, que vinha ascendente, despencou a partir do mês de agosto, com somente 6.036 vacinados. Em outubro daquele ano, foi ainda menos: 1.138 pessoas foram vacinadas, isso mesmo antes da Revolta da Vacina, o motim contra a Lei nº 1.261, que determinou a obrigação de se vacinar. O resultado: naquele ano, 3.500 pessoas morreram na então capital federal vítimas da doença. 116 anos depois, a história se repete talvez como farsa, mas certamente com ares de tragédia.
Também liderada por políticos em parceria com movimentos antivacina, a exemplo do que aconteceu no século passado, a desordem da informação tem atuado mais uma vez para reduzir as taxas de vacinação. As mentiras de que a vacina contra a varíola poderia provocar danos à saúde, a exemplo de gangrenas, epilepsia, sífilis ou até o surgimento de características bovinas, como nascimento de chifre, casco ou pelo de animal, foram substituídas por boatos que visam a assustar. Segundo narrativas diversas, todas sem lastro científico, as vacinas de hoje matam, causam autismo ou vão injetar um nanochip acionado pela tecnologia 5G, capaz de provocar doenças, diminuir a imunidade e monitorar a localização dos vacinados.
Em entrevista ao TAB, o historiador João Manuel Malaia Santos reforçou que, diferentemente de 2020, em 1904 o discurso anticiência dos contrários à vacinação era feito por opositores ao governo. Enquanto Oswaldo Cruz, médico responsável pela ação de imunização, explicava à população o que era a vacina, opositores discursavam que ela servia para introduzir uma doença dentro do corpo das pessoas, em um projeto de assassinato em massa da população — um argumento fortemente usado hoje em posts enganosos sobre o coronavírus. Sanitarista respeitado mundialmente, Oswaldo Cruz foi alvo 116 anos atrás de charges difamatórias e se tornou motivo de piada. Atualmente, empresta seu nome à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição que tem como objetivo promover a saúde e o desenvolvimento social e é referência na América Latina.
Um levantamento do site especializado em checagem Aos Fatos analisou 500 posts que geraram cerca de 1,8 milhão de interações, entre os dias 13 e 22 de outubro no Twitter, e mostrou que o posicionamento contra a vacina do coronavírus gerou 66% do engajamento na rede social, enquanto apenas 5% das mensagens eram a favor da obrigatoriedade. Assim como em 1904, o grupo contra vacinação também dissemina desinformação. De acordo com a agência de checagem, ele foi responsável pelas 76 alegações enganosas encontradas na rede.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), o movimento antivacina é uma ameaça e o risco que representa para a população pode ser comparado ao de ebola, HIV, dengue e gripe. Em 2019, a OMS incluiu o movimento entre as 10 maiores ameaças à saúde mundial, já que ele pode reverter o progresso conquistado no combate de doenças prevenidas por vacinas, como sarampo e poliomielite.
No Brasil, as narrativas falsas contribuíram para a volta do sarampo, doença anteriormente erradicada. Em queda há cinco anos, as coberturas vacinais não atingem nenhuma meta no calendário infantil desde 2018, de acordo com informações do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde. Até 2 de outubro de 2020, a taxa de imunização da BCG chegou a 63,88%, preocupando autoridades de saúde. A vacina infantil protege contra as formas graves da tuberculose.
Em uma pesquisa liderada pela OMS, em parceria com o Unicef, o Brasil aparece como um dos países que mais regrediu nos últimos 5 anos com uma taxa de cobertura de 70% para difteria, tétano e coqueluche. A queda na cobertura universal da vacinação para crianças foi de 23 pontos percentuais entre 2015 e 2019, a mesma queda vista na Venezuela, país que enfrenta uma crise humanitária. Apenas a Líbia, um país em guerra, e Samoa, registraram índices piores que os brasileiros.
No início da pandemia, em entrevista ao Redes Cordiais, a historiadora Mary del Priore ressaltou a importância de não deixarmos a “amnésia histórica” inibir nosso aprendizado. Nas palavras dela, “a história nos convida a pensar –como é que outras vidas foram vividas, que outras experiências foram vividas além da minha e isso me traz alguma forma de informação nova (…) Mas muitas fake news acabam caindo no que os historiadores chamam de amnésia histórica e aí é preciso um trabalho de formiguinha para tirar, lá do fundo do poço, esse balde de novas informações”.
O Brasil de 2020 não precisa reviver o drama sanitário de 1904. A História nos ensinou que vacinas são eficazes, capazes de erradicar doenças. No passado, a falta de conhecimento científico e exemplos históricos bem-sucedidos podiam tornar mais compreensíveis os baixos índices de vacinação. Hoje já há evidência suficiente para não repetirmos os mesmos erros do passado.
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